O objetivo deste artigo é levar ao público comum um
conhecimento sobre a função do fígado na nossa vida, focando essencialmente o
que é menos divulgado: questões mentais e emocionais ligadas a este órgão
relacionado diretamente com questões de poder pessoal
(autoestima/autoconfiança), de criatividade, humor e impulso vital. A dimensão
psicológica e espiritual é indissociável do corpo. Em todos os sistemas de
saúde de grandes culturas civilizacionais alguns com milhares de anos de
observação e experiência como o ayurveda e a medicina tradicional chinesa (MTC)
espírito, mente, corpo, emoções e
vísceras fazem parte de um todo só. Saídas da medicina ocidental, a homeopatia
e mais recentemente a psicossomática recuperaram esta visão global do ser
humano e reconhecem tal como aqueles sistemas que a doença começa na psique
porque ela é a energia formativa que cria os órgãos e os mantém em
funcionamento. Porém quando esta energia passa por longos períodos de stress
deixa marcas profundas no corpo: "uma mente sã num corpo são". Por
isso em todos estes sistemas de saúde o conceito de espírito e de psique é
parte integrante do diagnóstico (individual e global) e a saúde depende do
equilíbrio e a doença do desequilíbrio. Vêem cada órgão visceral como um
sistema funcional completo e não apenas como um órgão individual interno.
Enfatizam mais a inter-relação entre os sistemas funcionais do que consideram
os órgãos individualmente como na medicina tradicional ocidental de suporte
farmacológico.
Por que se torna tão importante cuidar do Fígado?
“O funcionamento deste órgão está na base de todas as doenças crônicas”.Embora o fígado seja um dos órgãos maiores do corpo
e o mais pesado respeitamo-lo muito pouco. Quase sempre pensamos que para a
manutenção da saúde são essenciais o cérebro, os pulmões e o coração, porém o
corpo sem fígado não sobrevive. É ele que faz a ligação ente os sistemas
digestivo e circulatório e ainda o responsável por fornecer ao cérebro a
glicose que este necessita para funcionar. Para muitas culturas antigas desde
as mais “primitivas” às grandes civilizações, o fígado é o centro da vida e
ainda neste sentido as investigações científicas das últimas décadas em
pacientes que realizaram transplantes deste órgão mostram que a “qualidade de
vida destes melhorou significativamente”. Geralmente não damos muita
importância ao fígado até ele começar a funcionar mal. Como nenhuma das suas
funções pode ser observada como o ritmo respiratório, o batimento cardíaco ou a
pulsação, o fígado é a última coisa à qual damos atenção porque não se queixa
diretamente a não ser já em estado adiantado de mal funcionamento. Vai,
contudo, dando alertas através de funções às quais está direta ou indiretamente
ligado como a digestão, tensão arterial, refluxo esofágico, problemas no
sistema reprodutivo, da pele ou da visão, etc..
Temos mais ou menos consciência da importância do
fígado no funcionamento harmonioso do corpo, ainda que na verdade pouco o
cuidemos — a maior parte das vezes por desconhecimento da sua grandiosa tarefa:
o fígado é o laboratório, o armazém e a fábrica do lar que a nossa
alma habita. Se não o conhecermos inteiramente como vamos poder
cuidá-lo e compreender porque se torna tão essencial fazê-lo? É cada vez mais
relevante voltarmos a relacionar-nos com o nosso corpo e a conhecê-lo porque só
cada um de nós pode experienciar o seu próprio corpo e os seus “segredos e
mistérios” que não são propriedade de corporações mas algo que nós também somos
e por isso podemos conhecer. Compreender o nosso corpo, confiar/acreditar na
nossa capacidade para o fazer viver em harmonia é sem dúvida fundamental para
desfrutarmos de saúde e alegria.
O corpo dado à nascença precisa de suficiente
descanso, alimentos nutritivos, boa higiene, exercício adequado, não apenas
para manter a saúde física mas também para regular a nossa energia vital. Está
provado que a falta de descanso faz com que o metabolismo da glucose se faça à
pressa, resultando no aumento de peso e no aumento da raiva. A doença é antes
de mais uma oportunidade para rever o nosso estilo de vida, os nossos objetivos
e escolhas e não necessariamente o fatalismo para a vida toda como quando é
olhada desde o ponto de vista patológico. Qualquer doença pode servir para nos
recordar a morte inevitável e como tal pode estimular a reconsiderar o “legado”
que estamos a criar, a pessoa que somos, a vida que estamos a viver, o uso
apropriado dos nossos talentos. A doença pode ensinar-nos a aceitação e a
paciência, pode abrir o nosso ser e o nosso coração. O corpo é um terreno
fértil para fazer trabalho interior: a consciência das sensações físicas,
posturas, gestos, expressões faciais, tom de voz, movimentos, respiração,
alimentação e a miríade de atividades físicas que fazemos, ancora-nos no
momento presente e revela verdades sobre nós-mesmos. Um corpo cuidado com amor e respeito retribui com bem estar,
energia e uma casa sólida para a nossa alma habitar.
O trabalho interior ou autoconhecimento é
fundamental na terapia do fígado, na qual é necessário perguntar e
perceber: como estou a viver o meu poder pessoal e como
o ponho em ação: será que tenho alguma fragilidade interior e
compenso-a, exercitando o poder sobre os outros? Estou a abusar da minha autoridade ou pelo contrário consigo
libertar o meu poder interior e deste modo a minha autoridade é naturalmente
aceite?(Nada pior que o poder pessoal que compensa, abusando e torturando
os outros). Estou a dar a minha energia ao quê e que energia estou
acentuando: passo o dia a lamentar-me, identificando-me com a
fraqueza e a carência, sentindo o quanto as pessoas são “más” ou vejo antes o
potencial e as possibilidades que todos temos de criar a nossa realidade? Consigo discernir genuíno de falso: sou autêntica/o?
Quando pensamos no fígado associamos geralmente
coisas como gordura, colesterol, cirrose, álcool, hepatite, toxinas, drogas,
etc.. Poucos estamos conscientes da sua ligação às emoções, ao sistema
imunitário, ao duo do poder pessoal autoestima/ autoconfiança, à liberdade ou à
espiritualidade. Poucos sabemos que é o órgão mais sensível à limitação,
aprisionamento, intolerância, fanatismo e repressão. O fígado é uma parte de um todo, de um corpo físico habitado por
um ser humano que somos cada um de nós. É um órgão dentro do organismo vivo que
é este corpo, o templo onde a nossa alma habita e quando está em equilíbrio é
a energia mais radiante que deixamos transparecer. Como seres humanos não só
temos um fígado como uma parte de nós é uma expressão do nosso fígado; por
conseguinte e como é ele ainda que controla
o sistema nervoso e exerce uma influência particular nos pensamentos quando
está desequilibrado, a mente fica muito agitada e há dificuldade de
concentração e confusão mental. Ficamos irritáveis, implicantes, impacientes e
enredamo-nos em brigas por tudo e por nada: fica-se com “maus fígados”, surgem
as dores de cabeça e as dores lombares. Sendo o órgão do fazer, da realização e
da criação dele emana o impulso ou ímpeto para trazer as coisas do interior
para o exterior Para realizar tudo isto necessita de um empurrão da agressão
saudável que nele habita. Se esta agressão natural manifesta em impulso ou
raiva fica estagnada ou reprimida expressa-se pelo sentimento de “não consigo”.
Quando alguém não consegue evoluir ou expressar-se por causa da sua educação de
infância, sistema de crenças ou da sua filosofia de não-violência, no momento
em que sente um impulso para se expressar, compensa o “não consigo”
expressando-se através de um comportamento colérico, irrita-se e fica zangada/o
muito rapidamente, é sarcástica/o ou cínica/o (raiva contida). Como é que esta
raiva nos afeta? A raiva como expressão da agressão natural é uma emoção
positiva porque nos leva à auto-afirmação, à busca do nosso território, a
defender o que é nosso, o que é justo. Porém, quando se torna irritabilidade,
agressividade, ressentimento e ódio, volta-se contra nós e afeta o fígado, a
digestão e o sistema imunológico. No ayurveda o fígado faz parte de pitta, a
constituição psicossomática que regula a energia da digestão e do metabolismo,
simbolizada pelo fogo, existente no corpo na forma ácida. Sabemos por
experiência que quando nos irritamos, o nosso organismo gera um aumento de
temperatura exagerado que nos faz sentir arder por dentro, ficar por vezes com
azia (sensação de acidez no estômago) ou ter indigestões. Do mesmo modo um
agravamento na constituição psicossomática de pitta caracterizada por um corpo
ácido e um fígado debilitado predispõe para a irritação, impaciência e
discussão, aos problemas digestivos e à insónia. O corpo pode fazer o fígado
adoecer mas este também pode tornar um corpo doente. Ambos reagem um ao outro.
O fígado é responsável por todas as transformações
químicas e metabólicas do nosso organismo: digestão, calor, percepção visual,
fome, sede, condições da pele, suavidade do corpo, inteligência, determinação e
coragem. Produz energia rápida quando necessário, fabrica novas proteínas,
regula a coagulação do sangue, regenera os próprios tecidos danificados, produz
mais de 13 000 de substâncias químicas e hormonais, incluindo colesterol,
testosterona e estrogénio, administra mais 50 000 enzimas vitais para manter a
saúde do corpo, fabrica proteínas novas, regula o nível de açúcar no sangue,
prevenindo picos altos ou baixos perigosos, armazena vitaminas e minerais
essenciais, incluindo vitaminas A, D, K, e B12 e ainda desintoxica o corpo de
todos os poluentes (toxinas) presentes no ambiente externo e interno. Se o
Fígado não estiver constantemente a remover o lixo metabólico e as toxinas
estaríamos mortos. Contudo o fígado não só é o órgão do
metabolismo responsável pela transformação alquímica da matéria em energia, do
grosso em fino, como é também responsável pela transformação do material em
espiritual.
Na MTC a alma é atribuída ao fígado e a raiva
fere-o. É um órgão Yin, representa as sensações que dizem respeito ao ser
profundo. Regido pela madeira e tal como uma planta a que se tira um bocado, o
fígado é capaz de se regenerar e crescer outra vez. Este conhecimento hoje
legitimado pela ciência era já do conhecimento dos povos há milhares de anos
como expresso na cultura chinesa e na nossa cultura, no mito de Prometeu cujo
fígado era comido de dia por uma águia e à noite voltava a crescer. Na cultura
chinesa e nas culturas xamânicas da América do Sul o fígado é associado à
espiritualidade, humor e boa-disposição. A cultura chinesa criou a figura de
Hotei/budha para simbolizar a energia saudável do fígado. É a divindade da
felicidade que dá e recebe livremente, representado com um grande sorriso ou
gargalhada e, por vezes, voando montado num fígado. O sorriso expressa prazer
de viver, humor e vitalidade. Na gargalhada, expressão do nosso poder interior,
todo o corpo vibra e os órgãos são massajados. Na nossa cultura, a alegria, o
prazer e a socialização também fluem do fígado como ilustra a expressão popular
“bons ou maus fígados”.
O sistema digestivo do qual o fígado é parte
integrante reflete em geral dificuldades para digerir algo na nossa vida que
expressamos de vários modos: “ainda não consegui engolir o que ele/a me disse”;
“nunca consegui digerir bem o que me fez”; “está-me atravessado na garganta”.
Os problemas hepáticos também são, naturalmente, um sinal de que encontramos
dificuldade para "digerir" alguma coisa na nossa vida. Regra geral
emoções ligadas à inveja, à raiva ou cólera. As tensões ou sofrimentos deste
órgão podem querer dizer que o nosso modo - habitual e excessivo – de reagir
diante das solicitações da vida é a raiva. Sempre que resolvemos os nossos
problemas com o mundo exterior gritando, zangando-nos, mobilizamos toda a
energia do fígado nessa direção, privando-o de uma grande parte da energia
necessária para o seu funcionamento cada vez que isso acontece,
consequentemente o seu papel na digestão não pode ser correto. Por outro lado,
na maioria das vezes, cóleras armazenadas ou sistematicamente guardadas no
interior densificam a energia no fígado, podendo traduzir-se em patologias mais
preocupantes (cirroses, quistos, cancro). Os problemas do fígado também nos
falam da dificuldade para viver ou para aceitar os nossos sentimentos e afetos
ou aqueles que os outros nos dedicam. Essas tensões podem igualmente significar
que a nossa imagem é colocada em causa pela nossa vivência e que a nossa
alegria de viver deu lugar ao azedume e à acidez interior diante desse mundo
exterior que não nos reconhece como gostaríamos — entramos em pleno domínio da
culpa. O sentimento de culpa "obriga” a justificar e a defender,
mobilizando as nossas energias de defesa psicológica. Muitas cóleras são um
sinal e a expressão de um medo que não encontra outro meio de defesa. A imagem
que temos de nós mesmos ou que os outros fazem de nós depende, em grande parte
do fígado se esta estratégia for frequente fragiliza a sua energia,
depois a da vesícula e ambos sofrem. Como o fígado participa profundamente no
sistema imunitário, particularmente na imunidade elaborada, ou seja,
enriquecida pelas experiências feitas pelo organismo esta está automaticamente
comprometida.
A vesícula biliar de dinâmica Yang, trata sobretudo
do ser social, participa na digestão física dos alimentos e, na digestão
psicológica dos acontecimentos, expresso em linguagem popular: "derramamos
bílis" quando temos inquietações. São sempre inquietações ligadas a um ser
(nós mesmos ou um outro) que nos é querido. Os males da vesícula falam da nossa
dificuldade para produzir os nossos sentimentos e para torná-los transparentes.
Na dinâmica Yang, ou seja, na relação com o exterior "qual é o meu
lugar", "sou reconhecido pelos outros"? "Sou amado
pelo que faço e represento"? Estas são muitas das interrogações às quais
as tensões vesiculares se referem, assim como as cóleras violentas que acompanham
os momentos difíceis, sobretudo quando existe na pessoa uma sensação de
injustiça no que diz respeito a si mesma. Os males da vesícula podem
significar, na realidade, que a nossa noção do que é justo e verdadeiro não é
muito clara nem peca pelo excesso, e que temos uma tendência para constranger,
usar, até mesmo manipular os outros (naturalmente, dando sempre boas
desculpas).
O fígado gosta de alimentos que deem energia e não
que a tirem. Comida é mente e espírito. Somos o que comemos e o que não comemos
e também somos o espírito com que comemos. Comer com prazer, alegria,
tolerância e humor é uma prática diária e constante destes valores na nossa
vida. Os padrões elevados de alimentação só podem ser preenchidos se as leis
naturais do metabolismo do fígado forem respeitadas, isto é como é a energia
obtida ou seja como são os carboidratos, as proteínas e gorduras quebradas,
reabsorvidas e redistribuídas pelo fígado de acordo com as necessidades? É
importante que a combinação entre formas rápidas e lentas de processar a comida
seja evitada. Isto resulta numa regra simples: proteínas, carboidratos ou
amidos (cereais, pão, batatas) devem ser consumidos com saladas ou legumes.
Assim, o corpo não é posto em maior stress e o fígado liberta-se de algum peso.
Evitar situações de conflito, agressividade e raiva é vital porque as emoções
negativas criam hormonas ponderosas que inundam o fígado com toxinas.
O trabalho interior da terapia do fígado pode ser
realizado com a ajuda da homeopatia e ainda com limpezas do fígado e da
vesícula. Em algumas das culturas antigas estas limpezas de preservação da
saúde fazem ainda parte dos seus estilos de vida, sejam elas práticas
introduzidas através de rituais e festivais como o caso dos festivais à deusa
Durga, na Índia ou através do sistema médico como o caso do tratamento
“panchakarma”, na medicina ayurvédica. Nas mudanças de estação os rituais prescritos para
estes festivais incluem práticas alimentares como a ingestão de rebentos de
neem para “fortalecer a força vital” e limpar o sangue”. Por trás desta prática
está o conhecimento e a experiência ayurvédica desta planta no tratamento de
inflamações, infecções, febres, problemas da pele e dos dentes. As recentes
investigações científicas confirmam as suas propriedades anti-inflamatórias,
antibacterianas, anti hiperglicémicas, imunológicas, anticancerígenas e
antimutagênicas. Estas práticas de limpeza estão de novo a ser reintroduzidas
na cultura ocidental pelas medicinas alternativas numa consciência mais
evoluída de saúde como o caso da limpeza do fígado e da vesícula com sais Epson
(sulfato de magnésio), evitando assim a prática comum da ablação da vesícula.
Porém, se o mal não é tratado na raiz e a causa não é removida, não evita a
continuação de formação de pedras porque estas também se alojam no fígado como
mostram as limpezas com estes sais de alguns dos meus pacientes sem vesícula.
Pedras na vesícula são impulsos fossilizados de agressividade. Na prática
clínica observo muitas vezes situações profissionais e/ou familiares a
transformarem-se numa obrigação da qual não se tem coragem para libertar e com
isto, as energias agregam-se e petrificam. Quando surgem cólicas, somos
obrigados a dar vazão a tudo aquilo a que não nos atrevemos antes: através de
movimentação intensa e gritos, bastante energia estagnada volta a fluir. O uso
regular de infusões de plantas apropriadas
(cardo mariano, fel da terra, alcachofra, alfazema,
cavalinha, erva de S. João ) conforme os casos pode ajudar mesmo muito a
equilibrar o fígado. Desacidificar o corpo com bicarbonato de sódio, limão,
ágar-ágar e argila não é menos importante. O corpo pode ser limpo e
desintoxicado mas se a mente não passar pelos mesmos processos, a doença volta
de novo a instalar-se.
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