quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Purificação do fígado

O objetivo deste artigo é levar ao público comum um conhecimento sobre a função do fígado na nossa vida, focando essencialmente o que é menos divulgado: questões mentais e emocionais ligadas a este órgão relacionado diretamente com questões de poder pessoal (autoestima/autoconfiança), de criatividade, humor e impulso vital. A dimensão psicológica e espiritual é indissociável do corpo. Em todos os sistemas de saúde de grandes culturas civilizacionais alguns com milhares de anos de observação e experiência como o ayurveda e a medicina tradicional chinesa (MTC) espírito, mente,  corpo, emoções e vísceras fazem parte de um todo só. Saídas da medicina ocidental, a homeopatia e mais recentemente a psicossomática recuperaram esta visão global do ser humano e reconhecem tal como aqueles sistemas que a doença começa na psique porque ela é a energia formativa que cria os órgãos e os mantém em funcionamento. Porém quando esta energia passa por longos períodos de stress deixa marcas profundas no corpo: "uma mente sã num corpo são". Por isso em todos estes sistemas de saúde o conceito de espírito e de psique é parte integrante do diagnóstico (individual e global) e a saúde depende do equilíbrio e a doença do desequilíbrio. Vêem cada órgão visceral como um sistema funcional completo e não apenas como um órgão individual interno. Enfatizam mais a inter-relação entre os sistemas funcionais do que consideram os órgãos individualmente como na medicina tradicional ocidental de suporte farmacológico. 
Por que se torna tão importante cuidar do Fígado? “O funcionamento deste órgão está na base de todas as doenças crônicas”.Embora o fígado seja um dos órgãos maiores do corpo e o mais pesado respeitamo-lo muito pouco. Quase sempre pensamos que para a manutenção da saúde são essenciais o cérebro, os pulmões e o coração, porém o corpo sem fígado não sobrevive. É ele que faz a ligação ente os sistemas digestivo e circulatório e ainda o responsável por fornecer ao cérebro a glicose que este necessita para funcionar. Para muitas culturas antigas desde as mais “primitivas” às grandes civilizações, o fígado é o centro da vida e ainda neste sentido as investigações científicas das últimas décadas em pacientes que realizaram transplantes deste órgão mostram que a “qualidade de vida destes melhorou significativamente”. Geralmente não damos muita importância ao fígado até ele começar a funcionar mal. Como nenhuma das suas funções pode ser observada como o ritmo respiratório, o batimento cardíaco ou a pulsação, o fígado é a última coisa à qual damos atenção porque não se queixa diretamente a não ser já em estado adiantado de mal funcionamento. Vai, contudo, dando alertas através de funções às quais está direta ou indiretamente ligado como a digestão, tensão arterial, refluxo esofágico, problemas no sistema reprodutivo, da pele ou da visão, etc..



Temos mais ou menos consciência da importância do fígado no funcionamento harmonioso do corpo, ainda que na verdade pouco o cuidemos — a maior parte das vezes por desconhecimento da sua grandiosa tarefa: o fígado é o laboratório, o armazém e a fábrica do lar que a nossa alma habita. Se não o conhecermos inteiramente como vamos poder cuidá-lo e compreender porque se torna tão essencial fazê-lo? É cada vez mais relevante voltarmos a relacionar-nos com o nosso corpo e a conhecê-lo porque só cada um de nós pode experienciar o seu próprio corpo e os seus “segredos e mistérios” que não são propriedade de corporações mas algo que nós também somos e por isso podemos conhecer. Compreender o nosso corpo, confiar/acreditar na nossa capacidade para o fazer viver em harmonia é sem dúvida fundamental para desfrutarmos de saúde e alegria.
O corpo dado à nascença precisa de suficiente descanso, alimentos nutritivos, boa higiene, exercício adequado, não apenas para manter a saúde física mas também para regular a nossa energia vital. Está provado que a falta de descanso faz com que o metabolismo da glucose se faça à pressa, resultando no aumento de peso e no aumento da raiva. A doença é antes de mais uma oportunidade para rever o nosso estilo de vida, os nossos objetivos e escolhas e não necessariamente o fatalismo para a vida toda como quando é olhada desde o ponto de vista patológico. Qualquer doença pode servir para nos recordar a morte inevitável e como tal pode estimular a reconsiderar o “legado” que estamos a criar, a pessoa que somos, a vida que estamos a viver, o uso apropriado dos nossos talentos. A doença pode ensinar-nos a aceitação e a paciência, pode abrir o nosso ser e o nosso coração. O corpo é um terreno fértil para fazer trabalho interior: a consciência das sensações físicas, posturas, gestos, expressões faciais, tom de voz, movimentos, respiração, alimentação e a miríade de atividades físicas que fazemos, ancora-nos no momento presente e revela verdades sobre nós-mesmos. Um corpo cuidado com amor e respeito retribui com bem estar, energia e uma casa sólida para a nossa alma habitar.
O trabalho interior ou autoconhecimento é fundamental na terapia do fígado, na qual é necessário perguntar e perceber:  como estou a viver o meu poder pessoal e como o ponho em ação: será que tenho alguma fragilidade interior e compenso-a, exercitando o poder sobre os outros? Estou a abusar da minha autoridade ou pelo contrário consigo libertar o meu poder interior e deste modo a minha autoridade é naturalmente aceite?(Nada pior que o poder pessoal que compensa, abusando e torturando os outros). Estou a dar a minha energia ao quê e que energia estou acentuando: passo o dia a lamentar-me, identificando-me com a fraqueza e a carência, sentindo o quanto as pessoas são “más” ou vejo antes o potencial e as possibilidades que todos temos de criar a nossa realidade? Consigo discernir genuíno de falso:  sou autêntica/o?
Quando pensamos no fígado associamos geralmente coisas como gordura, colesterol, cirrose, álcool, hepatite, toxinas, drogas, etc.. Poucos estamos conscientes da sua ligação às emoções, ao sistema imunitário, ao duo do poder pessoal autoestima/ autoconfiança, à liberdade ou à espiritualidade. Poucos sabemos que é o órgão mais sensível à limitação, aprisionamento, intolerância, fanatismo e repressão. O fígado é uma parte de um todo, de um corpo físico habitado por um ser humano que somos cada um de nós. É um órgão dentro do organismo vivo que é este corpo, o templo onde a nossa alma habita e quando está em equilíbrio é a energia mais radiante que deixamos transparecer. Como seres humanos não só temos um fígado como uma parte de nós é uma expressão do nosso fígado; por conseguinte   e como é ele ainda que controla o sistema nervoso e exerce uma influência particular nos pensamentos quando está desequilibrado, a mente fica muito agitada e há dificuldade de concentração e confusão mental. Ficamos irritáveis, implicantes, impacientes e enredamo-nos em brigas por tudo e por nada: fica-se com “maus fígados”, surgem as dores de cabeça e as dores lombares. Sendo o órgão do fazer, da realização e da criação dele emana o impulso ou ímpeto para trazer as coisas do interior para o exterior Para realizar tudo isto necessita de um empurrão da agressão saudável que nele habita. Se esta agressão natural manifesta em impulso ou raiva fica estagnada ou reprimida expressa-se pelo sentimento de “não consigo”. Quando alguém não consegue evoluir ou expressar-se por causa da sua educação de infância, sistema de crenças ou da sua filosofia de não-violência, no momento em que sente um impulso para se expressar, compensa o “não consigo” expressando-se através de um comportamento colérico, irrita-se e fica zangada/o muito rapidamente, é sarcástica/o ou cínica/o (raiva contida). Como é que esta raiva nos afeta? A raiva como expressão da agressão natural é uma emoção positiva porque nos leva à auto-afirmação, à busca do nosso território, a defender o que é nosso, o que é justo. Porém, quando se torna irritabilidade, agressividade, ressentimento e ódio, volta-se contra nós e afeta o fígado, a digestão e o sistema imunológico. No ayurveda o fígado faz parte de pitta, a constituição psicossomática que regula a energia da digestão e do metabolismo, simbolizada pelo fogo, existente no corpo na forma ácida. Sabemos por experiência que quando nos irritamos, o nosso organismo gera um aumento de temperatura exagerado que nos faz sentir arder por dentro, ficar por vezes com azia (sensação de acidez no estômago) ou ter indigestões. Do mesmo modo um agravamento na constituição psicossomática de pitta caracterizada por um corpo ácido e um fígado debilitado predispõe para a irritação, impaciência e discussão, aos problemas digestivos e à insónia. O corpo pode fazer o fígado adoecer mas este também pode tornar um corpo doente. Ambos reagem um ao outro.
O fígado é responsável por todas as transformações químicas e metabólicas do nosso organismo: digestão, calor, percepção visual, fome, sede, condições da pele, suavidade do corpo, inteligência, determinação e coragem. Produz energia rápida quando necessário, fabrica novas proteínas, regula a coagulação do sangue, regenera os próprios tecidos danificados, produz mais de 13 000 de substâncias químicas e hormonais, incluindo colesterol, testosterona e estrogénio, administra mais 50 000 enzimas vitais para manter a saúde do corpo, fabrica proteínas novas, regula o nível de açúcar no sangue, prevenindo picos altos ou baixos perigosos, armazena vitaminas e minerais essenciais, incluindo vitaminas A, D, K, e B12 e ainda desintoxica o corpo de todos os poluentes (toxinas) presentes no ambiente externo e interno. Se o Fígado não estiver constantemente a remover o lixo metabólico e as toxinas estaríamos mortos. Contudo o fígado não só é o órgão do metabolismo responsável pela transformação alquímica da matéria em energia, do grosso em fino, como é também responsável pela transformação do material em espiritual.
Na MTC a alma é atribuída ao fígado e a raiva fere-o. É um órgão Yin, representa as sensações que dizem respeito ao ser profundo. Regido pela madeira e tal como uma planta a que se tira um bocado, o fígado é capaz de se regenerar e crescer outra vez. Este conhecimento hoje legitimado pela ciência era já do conhecimento dos povos há milhares de anos como expresso na cultura chinesa e na nossa cultura, no mito de Prometeu cujo fígado era comido de dia por uma águia e à noite voltava a crescer. Na cultura chinesa e nas culturas xamânicas da América do Sul o fígado é associado à espiritualidade, humor e boa-disposição. A cultura chinesa criou a figura de Hotei/budha para simbolizar a energia saudável do fígado. É a divindade da felicidade que dá e recebe livremente, representado com um grande sorriso ou gargalhada e, por vezes, voando montado num fígado. O sorriso expressa prazer de viver, humor e vitalidade. Na gargalhada, expressão do nosso poder interior, todo o corpo vibra e os órgãos são massajados. Na nossa cultura, a alegria, o prazer e a socialização também fluem do fígado como ilustra a expressão popular  “bons ou maus fígados”.

O sistema digestivo do qual o fígado é parte integrante reflete em geral dificuldades para digerir algo na nossa vida que expressamos de vários modos: “ainda não consegui engolir o que ele/a me disse”; “nunca consegui digerir bem o que me fez”; “está-me atravessado na garganta”. Os problemas hepáticos também são, naturalmente, um sinal de que encontramos dificuldade para "digerir" alguma coisa na nossa vida. Regra geral emoções ligadas à inveja, à raiva ou cólera. As tensões ou sofrimentos deste órgão podem querer dizer que o nosso modo - habitual e excessivo – de reagir diante das solicitações da vida é a raiva. Sempre que resolvemos os nossos problemas com o mundo exterior gritando, zangando-nos, mobilizamos toda a energia do fígado nessa direção, privando-o de uma grande parte da energia necessária para o seu funcionamento cada vez que isso acontece, consequentemente o seu papel na digestão não pode ser correto. Por outro lado, na maioria das vezes, cóleras armazenadas ou sistematicamente guardadas no interior densificam a energia no fígado, podendo traduzir-se em patologias mais preocupantes (cirroses, quistos, cancro). Os problemas do fígado também nos falam da dificuldade para viver ou para aceitar os nossos sentimentos e afetos ou aqueles que os outros nos dedicam. Essas tensões podem igualmente significar que a nossa imagem é colocada em causa pela nossa vivência e que a nossa alegria de viver deu lugar ao azedume e à acidez interior diante desse mundo exterior que não nos reconhece como gostaríamos — entramos em pleno domínio da culpa. O sentimento de culpa "obriga” a justificar e a defender, mobilizando as nossas energias de defesa psicológica. Muitas cóleras são um sinal e a expressão de um medo que não encontra outro meio de defesa. A imagem que temos de nós mesmos ou que os outros fazem de nós depende, em grande parte do fígado  se esta estratégia for frequente fragiliza a sua energia, depois a da vesícula e ambos sofrem. Como o fígado participa profundamente no sistema imunitário, particularmente na imunidade elaborada, ou seja, enriquecida pelas experiências feitas pelo organismo esta está automaticamente comprometida.
A vesícula biliar de dinâmica Yang, trata sobretudo do ser social, participa na digestão física dos alimentos e, na digestão psicológica dos acontecimentos, expresso em linguagem popular: "derramamos bílis" quando temos inquietações. São sempre inquietações ligadas a um ser (nós mesmos ou um outro) que nos é querido. Os males da vesícula falam da nossa dificuldade para produzir os nossos sentimentos e para torná-los transparentes. Na dinâmica Yang, ou seja, na relação com o exterior "qual é o meu lugar", "sou reconhecido pelos outros"?  "Sou amado pelo que faço e represento"? Estas são muitas das interrogações às quais as tensões vesiculares se referem, assim como as cóleras violentas que acompanham os momentos difíceis, sobretudo quando existe na pessoa uma sensação de injustiça no que diz respeito a si mesma. Os males da vesícula podem significar, na realidade, que a nossa noção do que é justo e verdadeiro não é muito clara nem peca pelo excesso, e que temos uma tendência para constranger, usar, até mesmo manipular os outros (naturalmente, dando sempre boas desculpas).
O fígado gosta de alimentos que deem energia e não que a tirem. Comida é mente e espírito. Somos o que comemos e o que não comemos e também somos o espírito com que comemos. Comer com prazer, alegria, tolerância e humor é uma prática diária e constante destes valores na nossa vida. Os padrões elevados de alimentação só podem ser preenchidos se as leis naturais do metabolismo do fígado forem respeitadas, isto é como é a energia obtida ou seja como são os carboidratos, as proteínas e gorduras quebradas, reabsorvidas e redistribuídas pelo fígado de acordo com as necessidades? É importante que a combinação entre formas rápidas e lentas de processar a comida seja evitada. Isto resulta numa regra simples: proteínas, carboidratos ou amidos (cereais, pão, batatas) devem ser consumidos com saladas ou legumes. Assim, o corpo não é posto em maior stress e o fígado liberta-se de algum peso. Evitar situações de conflito, agressividade e raiva é vital porque as emoções negativas criam hormonas ponderosas que inundam o fígado com toxinas.
O trabalho interior da terapia do fígado pode ser realizado com a ajuda da homeopatia e ainda com limpezas do fígado e da vesícula. Em algumas das culturas antigas estas limpezas de preservação da saúde fazem ainda parte dos seus estilos de vida, sejam elas práticas introduzidas através de rituais e festivais como o caso dos festivais à deusa Durga, na Índia ou através do sistema médico como o caso do tratamento “panchakarma”, na medicina ayurvédica. Nas  mudanças de estação os rituais prescritos para estes festivais incluem práticas alimentares como a ingestão de rebentos de neem para “fortalecer a força vital” e limpar o sangue”. Por trás desta prática está o conhecimento e a experiência ayurvédica desta planta no tratamento de inflamações, infecções, febres, problemas da pele e dos dentes. As recentes investigações científicas confirmam as suas propriedades anti-inflamatórias, antibacterianas, anti hiperglicémicas, imunológicas, anticancerígenas e antimutagênicas. Estas práticas de limpeza estão de novo a ser reintroduzidas na cultura ocidental pelas medicinas alternativas numa consciência mais evoluída de saúde como o caso da limpeza do fígado e da vesícula com sais Epson (sulfato de magnésio), evitando assim a prática comum da ablação da vesícula. Porém, se o mal não é tratado na raiz e a causa não é removida, não evita a continuação de formação de pedras porque estas também se alojam no fígado como mostram as limpezas com estes sais de alguns dos meus pacientes sem vesícula.  Pedras na vesícula são impulsos fossilizados de agressividade. Na prática clínica observo muitas vezes situações profissionais e/ou familiares a transformarem-se numa obrigação da qual não se tem coragem para libertar e com isto, as energias agregam-se e petrificam. Quando surgem cólicas, somos obrigados a dar vazão a tudo aquilo a que não nos atrevemos antes: através de movimentação intensa e gritos, bastante energia estagnada volta a fluir. O uso regular de infusões de plantas apropriadas
(cardo mariano, fel da terra, alcachofra, alfazema, cavalinha, erva de S. João ) conforme os casos pode ajudar mesmo muito a equilibrar o fígado. Desacidificar o corpo com bicarbonato de sódio, limão, ágar-ágar e argila não é menos importante. O corpo pode ser limpo e desintoxicado mas se a mente não passar pelos mesmos processos, a doença volta de novo a instalar-se.


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