sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

CHEGANDO AO INCONSCIENTE

O homem utiliza a palavra escrita ou falada para expressar o que deseja transmitir. Sua linguagem é cheia de símbolos, mas ele também, muitas vezes, faz uso de sinais ou imagens não estritamente descritivos. Alguns são simples abreviações ou uma série de iniciais como ONU, UNICEF ou UNESCO; Outros são marcas comerciais conhecidas, nomes de remédios patenteados, divisas e insígnias. Apesar de não terem nenhum sentido intrínseco, alcançaram, pelo seu uso generalizado ou por intenção deliberada, significado reconhecido. Não são símbolos: são sinais e servem apenas, para indicar os objetos a que estão ligados.

O que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além de seu significado evidente e convencional. Implica alguma coisa vaga, desconhecida ou oculta para nós.  Tomemos como exemplo o caso de um indiano que, após uma visita à Inglaterra, contou na volta aos seus amigos que os britânicos adoravam animais, isto porque vira inúmeros leões, águias e bois nas velhas igrejas (O leão é Marcos, o boi, Lucas, a águia, João) Não estava informado (tal como muitos cristãos) que estes animais são símbolo dos evangelistas, símbolos provenientes de uma visão de Ezequiel que, por sua vez, tem analogia com Horus, o deus egípcio do Sol e seus quatro filhos. Existem, além disso, objetos tais como a roda e a cruz, conhecidos no mundo inteiro, mas que possuem, sob certas condições, um significado simbólico.

O que simbolizam exatamente ainda é motivo de controversas suposições.
Assim, uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem têm um aspecto “inconsciente” mais amplo, que nunca é precisamente definido ou de todo explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-la ou explicá-la. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a idéias que estão fora do alcance da nossa razão. A imagem de uma roda pode levar nossos pensamentos ao conceito de um sol “divino”, mas, neste ponto, nossa razão vai confessa a sua incompetência: o homem é incapaz de descrever um ser “divino”. Quando, com toda a nossa limitação intelectual, chamamos alguma coisa de “divina”, estamos dando-lhe apenas um nome, que poderá estar baseado em uma crença, mas nunca em uma evidência concreta.

Por existirem inúmeras coisas fora do alcance da compreensão humana é que freqüentemente utilizamos termos simbólicos como representação de conceitos que não podemos definir ou compreender integralmente. Esta é uma das razões por que todas as religiões empregam uma linguagem simbólica e se exprimem através de imagens. Mas este uso consciente que fazemos dos símbolos é apenas um aspecto de um fato psicológico de grande importância: o homem também produz símbolos, inconsciente e espontaneamente, na forma de sonhos.

O homem desenvolveu vagarosa e laboriosa a sua consciência, num processo que levou um tempo infindável, até alcançar o estado civilizado (arbitrariamente datado de quando se inventou a escrita, mais ou menos no ano 4.000 A.C.). E esta evolução está longe da conclusão, pois grandes áreas da mente humana ainda estão mergulhadas em trevas. O que chamamos psique não pode, de modo algum, ser identificado com a nossa consciência e o seu conteúdo.

Quem quer que negue a existência do inconsciente está, de fato, admitindo que hoje em dia temos um conhecimento total da psique. É uma suposição evidentemente tão falsa quanto à pretensão de que sabemos tudo a respeito do universo físico. Nossa psique faz parte da natureza e o seu enigma é, igualmente, sem limites. Assim, não podemos definir nem a psique nem a natureza. Podemos, simplesmente, constatar o possível, como funcionam. No entanto, fora de observações acumuladas em pesquisas médicas, temos argumentos lógicos de bastante peso para rejeitarmos afirmações como “não existe inconsciente” etc. Os que fazem este tipo de declaração estão expressando um velho misoneísmo – o medo do que é novo e desconhecido.
Há motivos históricos para esta resistência à idéia de que existe uma parte desconhecida na pisque humana. A consciência é uma aquisição muito recente da natureza e ainda está num estágio “experimental”. É frágil, sujeita as ameaças de perigos específicos e facilmente danificável.  Como já observaram os antropólogos, um dos acidentes mentais mais comuns entre os povos primitivos é o que eles chamam “a perda da alma” – que significa como bem indica o nome, uma ruptura (ou, mais tecnicamente, uma dissociação) da consciência.

Entre estes povos, para quem a consciência tem um nível de desenvolvimento diverso do nosso, a “alma” (ou psique) não é compreendida como uma unidade. Muito deles supõem que o homem tenha uma “alma do mato” além da sua própria, alma que se encarna num animal selvagem ou numa árvore com os quais o indivíduo possua alguma identidade psíquica.  É a isto que o ilustre etnólogo francês, Lucien Lévy-Bruhl chamou “participação mística”. Mais tarde, sob pressão de críticas desfavoráveis, renegou esta expressão, mas julgou que seus adversários é que estavam errados. É um fenômeno psicológico bem conhecido o de um indivíduo identificar-se, inconscientemente, com alguma outra pessoa ou objeto.

Esta identidade entre a gente primitiva toma várias formas. Se a alma do mato é a de um animal, o animal passa a ser considerado uma espécie de irmão do homem. Supõe-se, por exemplo, que um homem que tenha como irmão um crocodilo, possa nadar a salvo num rio infestado por estes animais.  Se a alma do mato for uma árvore, presume-se que a árvore tenha uma espécie de autoridade paterna sobre aquele determinado indivíduo. Em ambos os casos, qualquer mal causado à alma do mato é considerado uma ofensa ao homem. Certas tribos acreditam que o homem tem várias almas. Esta crença traduz o sentimento de alguns povos primitivos de que cada um deles é constituído de várias unidades interligadas apesar de distintas. Isto significa que a psique do indivíduo está longe de ser seguramente unificada. Ao contrário, ameaça fragmentar-se muito facilmente sob o assalto de emoções incontidas.

Estes fatos, com os quais nos familiarizamos através dos estudos antropólogos, não são tão irrelevantes para a nossa civilização como parecem. Também nós podemos sofrer uma dissociação e perder nossa identidade. Podemos ser dominados e perturbados por nossos humores, ou tornamo-nos insensatos e incapazes de recordar fatos importantes que nos dizem respeito e a outras pessoas, provocando a pergunta: “Que diabo se passa com você?”. Pretendemos ser capazes de “nos controlarmos”, mas o controle de si mesmo é virtude das mais raras e extraordinárias. Podemos ter a ilusão de que nos controlamos, mas um amigo facilmente poderá dizer-nos coisas a nosso respeito de que não tínhamos a menor consciência.

Não resta dúvida de que, mesmo no que chamamos “um alto nível de civilização”, a consciência humana ainda não alcançou um grau razoável de continuidade. Ela ainda é vulnerável e suscetível à fragmentação. Esta capacidade que temos de isolar parte de nossa mente é, na verdade, uma característica valiosa. Permite que nos concentremos em uma coisa de cada vez, excluindo tudo o mais que também solicita a nossa atenção. Mas existe uma diferença radical entre uma decisão consciente, que separa e suprime temporariamente uma parte de nossa psique, e uma situação na qual isso acontece de maneira espontânea, sem o nosso conhecimento ou consentimento e mesmo contra as nossas intenções.

O primeiro processo é uma conquista do ser civilizado, o segundo é aquela “perda da alma” dos primitivos e pode ser causa patológica de uma neurose.
Portanto, mesmos nos nossos dias, a unidade da consciência ainda é algo precário e que pode ser facilmente rompido. A faculdade de controlar as emoções que, de certo ponto de vista, é muito vantajosa, seria, por outro lado, uma qualidade bastante discutível já que despoja o relacionamento humano de toda a sua variedade, de todo o colorido e de todo o calor.

É sob esta perspectiva que devemos examinar a importância dos sonhos – fantasias inconscientes, evasivas, precárias, vagas e incertas do nosso inconsciente. Freud foi o pioneiro, o primeiro cientista a tentar explorar empiricamente o segundo plano inconsciente da consciência. Trabalhou baseado na hipótese de que os sonhos não são produtos do acaso, mas que estão associados a pensamentos e problemas conscientes.

Esta hipótese nada apresentava de arbitrária. Firmava-se na conclusão a que haviam chegado eminentes neurologistas (como Pierre Janet, por exemplo - de que os sintomas neuróticos estão relacionados com alguma experiência consciente).

Parece mesmo que estes sintomas são áreas dissociadas da nossa consciência que, num outro momento e sob condições diferentes, podem tornar-se conscientes.  Antes do início deste século, Freud e Josef Breuer haviam reconhecido que os sintomas neuróticos – histeria, certos tipos de dor e comportamento anormal – têm, na verdade, uma significação simbólica.  São como os sonhos, um modo de expressão do nosso inconsciente. E são igualmente simbólicos.  Por exemplo, reações físicas são apenas uma das formas pelas quais se manifestam os problemas que nos afligem inconscientemente. Eles se expressam, com mais freqüência, nos sonhos.

Freud atribui aos sonhos uma importância especial como ponto de partida para o processo da livre associação.  Mas, Jung, depois de algum tempo, sentiu que esta maneira de utilizar a riqueza de fantasias que o inconsciente produz durante o nosso sono era, há um tempo, inadequada e ilusória.   Considerou se não deveríamos prestar mais atenção à forma e ao conteúdo do sonho em vez de nos deixarmos conduzir pela livre associação de uma série de idéias para então chegar aos complexos, que poderiam ser facilmente atingidos também por outros meios. 

Este novo pensamento foi decisivo para que chegasse ao desenvolvimento de sua psicoterapia.  A partir deste momento, desistiu, gradualmente, de seguir as associações que se afastassem muito do texto de um sonho.  Preferiu concentrar-se nas associações com o próprio sonho, convencido de que o sonho expressaria o que de específico o inconsciente estivesse tentando dizer.

Esta mudança de atitude acarretou uma conseqüente mudança nos seus métodos, uma nova técnica que levava em conta todos os vários e amplos aspectos do sonho.  Uma história narrada pelo nosso espírito consciente tem início, meio e fim; tal não acontece com o sonho. Suas dimensões de espaço e tempo são diferentes. Para entendê-lo é necessário examiná-lo sob todos os seus aspectos – exatamente como quando tomamos um objeto desconhecido nas mãos e o viramos e reviramos até nos familiarizarmos com cada detalhe.  Manter-se o mais próximo possível do sonho, excluindo todas as idéias e associações irrelevantes que ele pudesse evocar.  É verdade que tais idéias e associações podem levar-nos aos complexos do paciente, mas ele tinha em mente um objetivo bem mais avançado do que a descoberta de complexos causadores de distúrbios neuróticos. Há muitos outros meios de identificação dos complexos: por exemplo, podemos obter todas as indicações e referências de que necessitamos utilizando os testes de associação de palavras (perguntando ao cliente o que ele associa a um determinado grupo de palavras e estudando, então, as suas respostas). Mas para conhecer e entender a organização psíquica da personalidade global de uma pessoal é importante avaliar quão relevante é a função de seus sonhos e imagens simbólicas.

Um homem sonha que enfiou uma chave numa fechadura, ou que está empurrando um pesado pedaço de pau, ou que está forçando uma porta com um aríete. Cada um destes sonhos pode ser considerado uma alegoria, um símbolo sexual. Mas o fato de o inconsciente ter escolhido, por vontade própria, uma destas imagens específicas – a chave, o pau, ou o aríete – é também de maior significação. A verdadeira tarefa é compreender por que a chave foi escolhida em lugar do pau, ou porque o pau em lugar do aríete.  E vamos algumas vezes descobrir que não é ato sexual que ali está representando, mas algum aspecto psicológico inteiramente diverso.

Concluiu, seguindo esta linha de raciocínio, que só o material que é parte clara e visível de um sonho pode ser utilizado para sua interpretação.  O sonho tem seus próprios limites. Sua própria forma específica nos mostra o que a ele pertence e o que dele se afasta. Enquanto a livre associação, numa espécie de linha em ziguezague, nos afasta do material original do sonho, o método que desenvolveu se assemelha mais a um movimento circunvoluntório cujo centro é a imagem do sonho.

O que dizia o sonho?

É fácil compreender por que quem sonha tem tendência para ignorar e até rejeitar a mensagem do seu sonho. A consciência resiste, naturalmente, a tudo que é inconsciente e desconhecido.  Já assinalei a existência, entre os povos primitivos, daquilo a que os antropólogos chamam “misoneísmo”, um medo profundo e supersticioso ao novo. Ante  acontecimentos desagradáveis, os primitivos têm as mesmas reações do animal selvagem. Mas o homem “civilizado” reage às idéias novas da mesma maneira, erguendo barreiras psicológicas que o protegem do choque trazido pela inovação. Pode-se facilmente observar este fato na reação do indivíduo ao seu próprio sonho, quando ele é obrigado a admitir algum pensamento inesperado.

Os dois pontos essenciais a respeito dos sonhos são os seguintes: em primeiro lugar, o sonho deve ser tratado como um fato a respeito do qual não se faz suposições prévias, a não ser de que ele tem certo sentido; em segundo lugar, é necessário aceitarmos que o sonho é uma expressão específica do inconsciente. Se julgarmos o sonho um acontecimento normal (o que, na verdade, ele é) temos de ponderar que ou ele é causal – isto é, há uma causa racional para a sua existência – ou, de certo modo, intencional. Ou ambos.

Vamos agora observar um pouco mais de perto os diversos modos pelos quais se ligam os conteúdos conscientes e inconscientes da nossa mente. Tomemos um exemplo com que estamos todos familiarizados. De repente não podemos lembrar do que íamos dizer, apesar de há instantes o pensamento estar perfeitamente claro.  Ou talvez queiramos apresentar um amigo e o seu nome nos escape na hora de pronunciá-lo.

Diremos que não conseguimos nos lembrar, mas, na realidade, o pensamento tornou-se inconsciente ou, pelo menos, momentaneamente separado do consciente.  Ocorre o mesmo fenômeno com os nossos sentidos. Se ouvirmos uma nota contínua emitida no limite da audibilidade o som parece interromper-se a intervalos regulares para começar de novo. Estas oscilações são causadas por uma diminuição e um aumento periódicos da nossa atenção e não por qualquer modificação da nota.

Quando alguma coisa escapa da nossa consciência esta coisa não deixou de existir, do mesmo modo que um automóvel que desaparece na esquina não se desfez no ar. Apenas o perdemos de vista. Assim como podemos, mais tarde, ver novamente o carro, assim também reencontramos pensamentos temporariamente perdidos.

Parte do inconsciente consiste, portanto, de uma profusão de pensamentos, imagens e impressões provisoriamente ocultos e que, apesar de terem sido perdidos, continuam a influenciar nossas mentes conscientes.  Um homem desatento ou “distraído” pode atravessar uma sala para buscar uma coisa. Pára, parecendo perplexo: esqueceu o que buscava. Suas mãos tateiam pelos objetos de uma mesa como se fosse um sonâmbulo; não se lembra do seu objetivo inicial, mas ainda se deixa, inconscientemente, guiar por ele. Percebe então o que queria. Foi a sua inconsciência que o ajudou a lembrar-se.

Se observarmos o comportamento de uma pessoa neurótica podemos vê-la fazendo muitas coisas de modo aparentemente intencional e consciente. No entanto, se a questionarmos descobriremos que ou não tem consciência alguma das ações praticadas ou então que pensa em coisas bem diferentes. Ouve mas está surda, vê, mas está cega, sabe e parece ignorante. Estes exemplos são tão freqüentes que o especialista logo compreende que o que está contido inconscientemente no nosso espírito comporta-se como se fora consciente e que nunca se pode ter certeza, em tais casos, de pensamento, fala ou ação conscientes ou não.

É este tipo de comportamento que leva tantos médicos a rejeitarem as afirmações de pacientes histéricos como se fossem mentiras. Tais pessoas certamente arquitetam maior número de inexatidões do que a maioria de nós, mas “mentira” dificilmente será a palavra certa a empregar. De fato, o seu estado mental provoca uma conduta indecisa, já que a sua consciência está sujeita a eclipses imprevisíveis causados por interferência do inconsciente. Até mesmo as sensações da pele de tais pessoas podem revelar semelhantes flutuações perceptivas. A pessoa histérica pode num determinado momento, sentir a agulha com que lhe picam o braço, e em outro nada sentir.  Durante todo o tempo, no entanto, o doente sabe, inconscientemente, o que lhe está acontecendo.

 

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