sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

SIMBOLOS ETERNOS

A história antiga do homem está sendo redescoberta de maneira significativa através dos mitos e imagens simbólicas que lhe sobreviveram. À medida que os arqueólogos pesquisam mais profundamente o passado, vamos atribuindo menos valor aos acontecimentos históricos do que  às estátuas, desenhos, templos e línguas que nos contam  velhas crenças. Outros símbolos também nos têm sido revelados pelos filósofos e historiadores religiosos, que traduzem estas crenças em conceitos modernos inteligíveis, conceitos que, por sua vez, adquirem vida graças aos antropólogos. Estes últimos nos mostram que as mesmas formas simbólicas podem ser encontradas, sem sofrer qualquer mudança, nos ritos ou nos mitos de pequenas sociedades tribais ainda existentes nas fronteiras da nossa civilização.

 

Todas estas pesquisas contribuiram imensamente para corrigir a atitute unilateral de pessoas que afirmam que tais símbolos pertencem a povos antigos ou a tribos contemporênas “atrasadas” e, portanto alheia às complexidades da vida moderna. Em Londres ou Nova  Iorque é fácil repudiar os ritos de fecundidade do homem neolítico como simples superstições arcaicas. Se alguém pretende ter tido uma visão ou ouvido vozes, não será tratado como santo ou como oráculo: dir-se-á que está com um distúrbio mental. Ainda lemos os mitos dos antigos gregos ou dos índios americanos, mas não conseguimos descobrir qualquer relação entre estas histórias e nossa própria atitude para com os  “heróis” ou os inúmeros acontecimentos dramáticos de hoje.

 

No entanto as conexões existem. E os símbolos que as representam não perderam importância para a humanidade.

 

Foi a escolha da Psicoterapia  Analítica do Dr. Jung que, nos nossos dias, mais contribuiu para a compreensão e reavalidação destes símbolos eternos. Ajudou a eliminar a distinção arbitrária entre o homem primitivo, para quem os símbolos são parte natural do cotidiano, e o homem moderno que, aparentemente, não lhes encontra nenhum sentido ou aplicação. A mente humana tem sua história própria e a psique retém muitos traços dos estágios anteriores da sua evolução. Mais ainda, os conteúdos  do inconsciente exercem sobre a psique uma influência formativa. Podemos, conscientemente, ignorar a sua existência, mas inconscientemente reagimos a eles, assim como às formas simbólicas – incluindo os sonhos – através das quais se expressam.

 

O indivíduo pode ter a impressão de que seus sonhos são espontâneos e sem conexâo. Mas o analista, ao fim de um longo período de observação, consegue constatar uma série de imagens oníricas com estrutura significativa. Se o paciente chegar a compreender o sentido de tudo isto poderá, eventualmente, mudar sua atitude para com a vida. Alguns destes símbolos oníricos provêm daquilo que Jung chamos “o inconsciente  coletivo” – isto é, a parte da psique que retém e transmite a herança psicológica comum da humanidade. Estes símbolos  são tão antigos e tão pouco familiares ao homem moderno que este não é capaz de compreendê-los ou assimilá-los diretamente.

 

É ai que o analista torna-se util. Possívelmente o paciente precisará ser libertado de uma sobrecarga de símbolos que se tenham tornado gastos e inadequados. Ou, ao contrário, talvez necessite de ajuda para descobrir o valor permanente de algum velho símbolo que, longe de estar morto, esteja tentando renascer sob uma forma nova e atual.

 

Há um exemplo surpreendente e que deve ser familiar a todos os que nascerm numa sociedade cristã. No Natal, manifestamos a emoção íntima que nos desperta o nascimento mitológico de uma criança semidivina, apesar de não acreditarmos necessariamente na doutrina da Imaculada Concepção de Maria ou de possuirmos qualquer crença religiosa. Sem o saber, sofremos a influência do simbolismo do resnascimento. São remanescências de uma antiquissima festa de solstício que exprime a esperança de que se renove  a esmaecida paisagem de inverno do hemisfério norte. Apesar de toda a nossa sofisticação, alegramo-nos com esta festa simbólica da mesma forma com que, na Páscoa, nos juntamos aos nossos filhos no ritual dos ovos de Páscoa ou dos coelhos.

 

Mas será que compreendemos o que estamos fazendo, ou percebemos a conexão entre a história do nascimento, morte e ressurreição de Cristo com o simbolismo folclórico da Páscoa? Habitualmente nem chegamos a considerar tais assuntos como merecedores de maior atenção intelectual.

 

No entanto, um é complemento do outro. O suplício da cruz na sexta-feira Santa parece, a princípio, pertencer ao mesmo tipo de simbolismo da fecundidade  que vamos encontrar nos rituais de homenagem a outros “salvadores”, como Osíris, Tammuz e Orfeu. Também eles tiveram nascimento divino ou semidivino, desenvolveram-se, foram mortos e ressuscitaram. Pertenciam, é verdade, a religiões cíclicas em que a morte e a  ressurreição do deus-rei era um mito eternamente recorrente.

 

Mas a ressurreição de Cristo no Domingo de Páscoa é muito menos convincente, do ponto de vista ritual, do que o simbolismo das religiões cíclicas. Porque Jesus sobe aos céus para sentar-se á direita do Pai: a sua ressurreição acontece uma só vez e não e repete.

 

É este caráter final do conceito cristão da ressurreição (confirmado pela idéia do Julgamento final, que é, também, um tema “fechado”) que distingue o cristianismo dos outros mitos do deus-rei. A ocorrência dá-se uma única vez, e o ritual apenas a comemora. Este sentido de caráter final, definitivo, será talvez um das razões por que os primeiros  cristãos, ainda influenciados por tradições anteriores, sentiam que o cristianismo deveria ser suplementado por alguns elementos dos ritos da fecundidade mais antigos. Precisavam que esta promessa de ressurreição fossem sempre repetida. E é o que simbolizam o ovo e o coelho da Páscoa.

 

Tomei este exemplo para mostrar como o homem continua a reagir às profundas influências psíquicas que, conscientemente, há de rejeitar como simples lendas folclóricas de gente supersticiosa e sem cultura. Mas é preciso irmos bem longe.  Quanto mais detalhadamente se estuda a história do simbolismo e do seu papel na vida das diferentes culturas, mas nos damos conta de que há também um sentido de recriação nesses símbolos.

 

Alguns símbolos relacionam-se com a infância e a transição para a adolescência, outros com a maturidade, e outros ainda com a experiência da velhice, quando o homem está se preparando para a sua morte inevitável.

 

O Mito do herói é o mais comum e o mais conhecido em todo o mundo. Encontramo-lo na mitologia clássica da Grécia e de Roma, na Idade Média, no Extremo Oriente entre as tribos primitivas contemporâneas. Aparece também em nossos sonhos. Tem um poder de sedução dramática flagrante e, apesar de menos aparente, uma importância psicológica profunda. São mitos que variam muito nos seus detalhes, mas quanto mais os examinamos mais percebemos o quanto se assemelham na estrutura. Isto quer dizer que guardam uma forma universal mesmo quando desenvolvidos por grupos ou indivíduos sem qualquer contato cultuaram entre si – como por exemplo as tribos africanas e os índios norte americanos, os gregos e os incas do Peru. Ouvimos repetidamente a mesma história do herói de nascimento humilde mas milagroso, provas de sua força sobre-humana precoce, sua ascensão rápida ao poder e à notoriedade, sua luta triunfante contra as forças do mal, sua falibilidade ante a tentação do orgulho e seu declínio, por motivo de traição ou por um ato de sacrifício “heróico”, onde sempre morre.

 

Uma outra cartacterística relevante no mito do herói vem fornecer-nos uma chave para a sua compreensão. Em várias destas histórias a fraqueza inicial do herói é contrabalançada pelo aparecimento de poderosas figuras “tutelares” – ou guardiães – que lhe permitem realizar as tarefas sobre-humanas que lhe seriam impossíveis de executar sozinho. Entre os heróis gregos, Teseu tinha como protetor Poseidon, deus do mar; Perseu tinha Atenéia: Aquiles tinha como tutor Quiron, o sábio centauro.

 

Estas personagens divinas são, na verdade representações simbólicas da psique total, entidade maior e mais ampla que supre o ego da força que lhe falta. Sua função específica lembra  que é atribuição essencial do mito heróico desenvolver no indivíduo a consciência do ego – o conhecimento de suas próprias forças e fraquezas – de maneira a deixá-lo preparado para as difíceis tarefas que a vida lhe dá  de impor. Uma vez passado o teste inicial e entrando o indivíduo na fase de maturidade da sua vida, o mito do herói assinala, por assim dizer, a conquista daquela maturidade.

Até aqui referí-me ao mito completo do herói, em que se descreve minuciosamente o ciclo total do seu nascimento até a sua morte. Mas é importante reconhecermos que em cada fase deste ciclo a história do herói toma formas particulares, que se aplicam a determinado ponto alcançado pelo indivíduo no desenvolvimento da sua consciência do ego e também aos problemas específicos com que se defronta a um dado momento. Isto é, a imagem do herói evolui de maneira a refletir cada estágio de evolução da personalidade humana.

A personalidade jovem e ainda indeterminada do ego é protegida pela figura da mãe – proteção simbolizada pela Madona, (numa pintura do artista quatrocentista italiano Piero della Francesca), ou pela deusa egípcia Nut, inclinada sobre a terra (alto-relevo do século V AC). Mas o ego deve, por fim, libertar-se da insconsciência e da imaturidade e sua batalha pela libertação está muitas vezes simbolizada na luta do herói contra um monstro – como a batalha  do deus japones Susanoo contra uma serpente. O Herói nem sempre ganha de saída. Por exemplo, Jonas chegou a ser engolido pela baleia, de um manuscrito do século XIX.

Os heróis muitas vezes lutam contra monstros para salvar “donzelas em perigo” (que simbolizam a anima). São Jorge mata um dragão para libertar uma donzela (pintura italiana do XVI.


 

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